O que disse Ketlin
Um mini conto ficcional que toca a catástrofe ambiental do Rio Grande do Sul

— Você não sabe, você não está aqui, é isso o que te sobrou: uma opinião ridícula e egoísta [ respira brevemente ]; você não entende, e como poderia? Você não entrou na água, muito menos a água em você que continua falando sobre nós, sobre mim, sobre a rua em que eu moro ou morava e que agora não passa de um mundo de lama, igual essa tua cabeça que não tem formato diferente de mais um monte de famosinhos esnobe. Eu tenho nada menos que nojo de vocês, eu não quero olhar na cara de vocês nunca [ respiro mais demorado ]; lixo humano!! Eu não tenho tempo pra isso; os meus pés doem. Minha mãe e meu pai sabem disso, eles sim sabem de tudo porque eles foram tocados pela grandeza das águas, isso que chamamos de grande rio há tanto tempo quanto vivem nossas raízes. Idiotas aproveitadores do inferno. Vocês não conhecem a água. Isso, isso mesmo, agora faz ainda mais sentido pra mim: vocês vieram do fogo. São vozes acompanhadas dos demônios que carregam. [ mão úmida coça as pálpebras ] Eu não queria dizer isso, mas alguém precisa dizer e eu não aguento mais engolir a água e não cuspir nada depois. Na escola diziam que meu corpo tem não sei quantos por cento de água — era bastante, era quase tudo se não me engano; agora estou aqui sendo parte da água e vocês lá fora em suas facilidades. Os meus pés doem porque perdi minhas meias e sapatos e não há algo no qual pisar sem que a umidade tenha tomado conta; isso, troquem suas fotos de perfil do Facebook, canalhas! [ o cabelo sem os tratamentos de outrora cai por sobre os olhos cansados ] Eu não tenho mais tempo para isso, mas a fala é pouco do que sobrou depois da devastação; ainda temos a fala e a alma, nós que crescemos no seio desse grande rio. Ainda seremos filhos e vocês, aproveitadores, não conhecem o amor que nos moldou até aqui. [ coloca as mãos no peito ofegante ] Não seremos lama jamais, não somos restos de uma numeração e estatística, e agora mesmo os nossos que padeceram tem um coração que não será esquecido pela grandeza de nossas águas. Ainda estaremos aqui, ainda seremos vida mesmo que não se importem e sejam irresponsáveis; esse rio grande que somos é imortal. Eu engulo o choro junto à água que levou minha casa porque a casa que vê é madeira; a que conhecemos é diferente, é de uma linguagem que vocês não aprenderam. [ olha acima e nota o vento empurrar gotas que descem em seu rosto ] Eu saio e resgato aqueles que consigo porque eles são minha gente. E quando tudo isso acabar ainda veremos uma luz descer de cima e encostar nessa linha que nosso rio faz: esse o desenho da cruz que forma a nossa fé que é para sempre! [ o choro antes engolido transborda brevemente, semelhante à vida nos arredores, semelhante aos excessos que Ketlin reconhece como marcas de sua humanidade que não foi retirada pela catástrofe; do contrário, tornou-a muito mais humana mesmo que não encontre o recurso da fala pública dentro dos noticiários ]
Impressionante! Forte, fustigante e imersivo. A realidade a fazer-se palavra. Fica algo preso à memória como pele ao corpo, li não sabendo me desvincular.